Gal faz garimpo musical e lança álbum com inéditas
Luiz Fernando Vianna - Folha de São Paulo - 02/09/2005Depois de sete anos lançando discos com repertórios isentos de novidades, Gal Costa volta ao presente com "Hoje". O título significativo foi retirado de uma canção de Moreno Veloso, que, não fosse filho de Caetano, poderia entrar no largo rol de compositores pouco ou nada conhecidos do CD.
"Achei que "Hoje" se adequava, porque estou fazendo 60 anos [em 26 de setembro] com um disco rejuvenescedor, instigante. Não me lembro, na história da MPB, de alguém que tenha lançado tanta gente nova para o grande público", orgulha-se a cantora.
Gal passou os últimos anos trocando de gravadora (BMG, MZA, Abril, Indie) e sendo cobrada para lançar um disco de inéditas. Agora na Trama e morando em São Paulo -depois de sete anos em Salvador- ela diz ter ficado mais próxima dos novos autores.
"É preciso ter disponibilidade para ir aos lugares, procurar. Os compositores estão escondidos e têm dificuldade de mostrar seu trabalho. Na minha geração era mais fácil, pois havia os festivais e a mídia estava disponível para registrar tudo o que acontecia nas ruas, nas faculdades, nas festas."
Com a ajuda da Trama e do letrista Carlos Rennó, Gal recebeu cerca de 200 músicas inéditas ou gravadas apenas por seus autores. A qualidade que afirma ter encontrado é um mote para ela rechaçar que tenha afirmado, em 2001, que não havia bons compositores novos no Brasil.
"Não sou louca de dizer uma frase dessa. Fui mal interpretada. O que disse é que, quando fiz "Aquele Frevo Axé" [1998], um disco que passou em branco e hoje parte da imprensa reconhece como bom e de certa forma inovador, não encontrei nada que se adequasse ao meu universo musical. Existem bons [compositores] sim", afirma.
Alguns desses, estão em "Hoje": os baianos Moisés Santana, Péri e Tito Bahiense; o pernambucano Junio Barreto; e o paulista Hilton Raw. Há outros "novos compositores" de outras áreas, como os artistas plásticos Nuno Ramos, Eduardo Climachauska e Lenora Barros, e o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, editor de Opinião da Folha.
"Péri, Moisés e Junio, por exemplo, gravaram discos independentes e estão ralando há bastante tempo, mas ninguém dava trela. Tive a oportunidade de ter acesso a esse material e lançá-lo", diz Gal.
Liderando a turma, autora de três das 14 faixas, está a dupla formada pelo paulista Carlos Rennó e o músico Lokua Kanza, nome conhecido na seara world music, nascido no antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo.
"No show que vou começar a montar, ainda pretendo incluir um ou dois compositores que eu queria ter gravado, mas ficaram de fora", conta ela.
Representando sua geração, estão, com uma inédita cada, Caetano ("Luto") e Chico Buarque ("Embebedado", com letra de José Miguel Wisnik). Eles aparecem discretos no disco, nas faixas 9 e 13, respectivamente. "A escolha das faixas foi casual", diz Gal.
"Hoje" foi feito de uma forma pouco comum nos tempos atuais: com uma mesma banda tocando em quase todas as faixas e um mesmo arranjador, Cesar Camargo Mariano. "Cesar vive um momento bem "cool", e eu sou uma cantora essencialmente "cool"."
O sonho inicial de Cesar, de fazer com a cantora um disco dedicado ao repertório de Chet Baker, ficou para 2006.
Foi o pianista quem fez a ponte entre a Trama, de seu enteado João Marcello Bôscoli, e Gal. Ela nega que tenha sofrido pressões de gravadoras nos discos anteriores ("Eu estava gravando as coisas que eu queria"), mas se diz feliz em ter seguido o caminho das independentes, como fizeram os também "medalhões" Maria Bethânia e Chico Buarque.
"Eles [da Trama] gostam de fazer o que o artista quer, trabalhar em comunhão. Isso não tem preço. É um clima muito melhor do que o anterior", comenta.
Ela não deixa vazar nenhum temor por estar lançando um CD de compositores novos por um selo menor: "Meu público é fiel".
"Hoje" chega "rejuvenescedor" em um momento "muito ruim" no país. "É desolador o PT ter vindo com um discurso de mudança, e acabar sendo revelado que [o partido] não era só conivente, mas fez tudo em dobro. Espero que esse processo seja um exorcismo, para limpar essa bandalheira. Estou muito entristecida."
Intérprete mostra fôlego e coragem
"Hoje" não é a redenção milagrosa de Gal, como cogitavam fãs descontentes e críticos contentes com o desgoverno recente de sua carreira, e muito menos um desastre. É um bom disco, cujo mérito maior é o renascimento da coragem da cantora.
Gal Costa rejeitou o modelo embalsamador de diva, que ameaçava incorporar, e voltou às novas composições. O resultado de sua colheita é irregular, mas os bons frutos são maioria.
Um deles é a faixa-título, canção de Moreno Veloso que tem sua força na extrema delicadeza de melodia e letra. Na mesma chave está "Nada a Ver" (Hilton Raw, Lenora e Marcos Augusto), em que a melancolia das notas longas se traduz no piano e no baixo acústicos que acompanham Gal.
Cesar Camargo Mariano volta a brilhar no piano e no arranjo de "Pra que Cantar", um belo samba de fossa anti-Carnaval ("Me deixem fora dessa euforia de três dias") de Nuno Ramos. O artista plástico também é um dos autores de "Jurei", eficiente sambão com toques jazzísticos.
Em "Os Dois", a melodia de Moisés Santana é ótima, um samba-canção que vira blues nas regiões graves, mas a letra traz o enjôo das duplas citações: faz jogos de palavras com músicas da bossa nova, como Caetano Veloso fizera em "Saudosismo".
"Santana" (Junio Barreto/João Carlos), de letra intrincada, ficou com boa mistura entre acústico e eletrônico, emulando um pouco de Jorge Ben Jor. Este é referência nítida em "Logus Pé" (Tito Bahiense), um passeio surrealista pelas ruas de Salvador que ganha de Gal interpretação à anos 70.
Em "Voyeur" (Péri), a tibieza da música é disfarçada pela agradável leveza baiana do clima criado por Gal e Cesar. Essa leveza também está na faixa de abertura, "Mar e Sol", mas a letra de Carlos Rennó para a melodia de Lokua Kanza é por demais banal.
Os dois são parceiros na também banal "Te Adorar" e na múltipla "Sexo e Luz", que cativa pelos caminhos inusitados e crescendos, ótimos para Gal. A gravações tem vocais de Kanza, bem superiores aos que o paulista Silvera faz em outras faixas.
A contribuição de Caetano ("Luto") é, também, uma bela canção situada no Carnaval, sofrida declaração de amor à festa. Chico Buarque, ao lado do aqui letrista José Miguel Wisnik, participa com a deliciosamente sinuosa "Embebedado".
Cantando com suavidade e novo fôlego, Gal reencontra o amanhã em "Hoje".
Um comentário:
Adorei a resenha,as ''duplas citações'' são ótimas,eu gosto.
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