sexta-feira, 13 de agosto de 2010

1967 - III Festival de Música Popular Brasileira

III Festival da Record
Editado por: Lucas Costas, Cláudio Pires, Laura Penha
Fonte: Site ~> Era dos Festivais

Em 1967, a música ocupava o horário nobre da TV Record e gerava acalorados debates. A “Jovem Guarda” fazia enorme sucesso nas tardes de domingo e o programa “Fino da Bossa”, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, começava a perder espaço. O êxito de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderlea era, para muitos, um sinal de que a MPB estava perdendo força. E tudo isso acontecia em uma ditadura militar, o que fazia com que os debates ganhassem contornos de arena. Segundo Nelson Motta, "a Jovem Guarda representava a música jovem e a MPB, a música brasileira. E a gente se perguntava: por que não pode haver uma música jovem e brasileira? Era uma pergunta pertinente. Mas era estranha para a época. A ponto de organizarem uma passeata em plena ditadura militar - com tanta coisa para protestar - com faixas, bandeiras e cartazes para gritar: 'abaixo a guitarra, abaixo a guitarra'."

A passeata ocorreu dois meses antes do festival. Estavam presentes Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues e, curiosamente, Gilberto Gil. Caetano Veloso foi contra a manifestação e assistiu a tudo do Hotel Danúbio ao lado de Nara Leão. Chico Buarque também não participou. O jornalista Sérgio Cabral ficou do lado da passeata, mas diz que hoje vê a manifestação como uma coisa ridícula.

O grande sucesso do Festival de 1966 - vencido por "A Banda" (Chico Buarque), com Chico Buarque e Nara Leão, e "Disparada" (Geraldo Vandré/Theo de Barros), defendida por Jair Rodrigues - criou uma imensa expectativa para o Festival de 1967. Jornais, revistas e todos os meios de comunicação deram grande espaço ao evento mesmo antes de ele começar. Não faltavam elementos para tornar aquela disputa emocionante.

Todos a postos, no dia 30/10/1967 começava a primeira eliminatória. Os grandes destaques foram "Roda Viva" (Chico Buarque), com Chico Buarque e MPB 4, e "Ponteio" (Edu Lobo / Capinam), que Edu cantou ao lado de Marília Medalha. Duas vaias também merecem registro: a primeira foi para Roberto Carlos. O ídolo máximo da Jovem Guarda começou vaiado, mas sua competente interpretação do samba "Maria, Carnaval e Cinzas" (Luis Carlos Paraná), logo ganhou a plateia. A outra vaia foi mais pesada. Nana Caymmi, que havia recebido uma enorme vaia no Festival Internacional da Canção no ano anterior, classificou "Bom Dia" (Nana Caymmi/Gilberto Gil). Era uma bela canção, mas estava longe de ter os elementos políticos, musicais e comportamentais que arrebatavam as plateias festivalescas. Pra completar, a música "O Combatente" (Walter Santos/Teresa Souza) - que tinha uma mensagem deliberadamente política (quase panfletária) e foi interpretada pelo enérgico Jair Rodrigues - ficou de fora. A belíssima "Eu e a Brisa" (Johnny Alf), cantada por Márcia, também caiu por terra nessa eliminatória, mas se tornaria um dos grandes clássicos da MPB ao longo dos anos. Quando "Roda Viva", "Ponteio", "Maria, Carnaval e Cinzas" e "Bom Dia" foram anunciadas como classificadas, Nana teve que ouvir mais uma vaia.

"Roda Viva" foi composta com o intuito de fazer um samba diferente. Chico fez a música e a entregou ao Magro, do MPB 4, que fez o arranjo vocal. Como tema, Chico escolheu o sufocante mundo do show business que passou a conhecer a partir do estrondoso sucesso de "A Banda" em 1966.

A maior surpresa musical do festival estava guardada para a segunda eliminatória. Para apresentar seu número, Gilberto Gil procurou o Quarteto Novo, composto por Hermeto Pascoal, Theo de Barros, Airto Moreira e Heraldo Do Monte. Mesmo tendo participado de uma passeata contra as guitarras elétricas, Gil estava profundamente influenciado pelo som dos Beatles - especialmente o disco “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band” -, dos Rolling Stones e da vanguarda do rock internacional. Na sua cabeça, pipocavam ideias de mesclar as guitarras de George Harrison e Keith Richards com o violão de Jorge Ben, a sanfona de Luiz Gonzaga e os ritmos regionais brasileiros com os sons eletrônicos. Eram ideias arrebatadoras. E o Quarteto Novo não topou a encrenca. O grupo acabou acompanhando Edu Lobo em "Ponteio". O maestro Rogério Duprat, que seria o arranjador da obra-prima de Gil, sugeriu que ele conhecesse uns meninos: um grupo de jovens de extrema sensibilidade musical e, principalmente, com afinidades estéticas em relação a Gil.

Dessa forma, Rita, Arnaldo e Sergio - Os Mutantes - foram convidados a tocar guitarra, baixo e cantar "Domingo no Parque". Nos bastidores do festival, o repórter da TV Record Randal Juliano entrevistou Arnaldo Baptista ao lado de Gilberto Gil e perguntou: "Qual foi a reação de vocês quando Gilberto Gil chegou e disse: 'quero vocês no meu número no festival tocando guitarra elétrica'?". Arnaldo respondeu "nós achávamos que dava certo". Deu certo. A música de Gil também começou vaiada e conquistou o público durante a apresentação. Os jurados também ficaram de queixo caído. A imprensa decretou que "Domingo no Parque" era a favorita ao lado de "Ponteio".

Nas outras classificadas da segunda eliminatória, os cantores brilharam: "O Cantador" (Dori Caymmi/Nelson Motta) teve uma potente interpretação de Elis Regina; "Samba de Maria" (Vinícius de Moraes/Francis Hime), uma suingada performance de Jair Rodrigues; e a longa "A Estrada e o Violeiro" (Sidney Miller) contou com o prestígio de Sidney e Nara Leão.

Caetano Veloso era conhecido pela maioria do público apenas pela sua vasta cultura musical. Duelava com Chico Buarque no programa "Esta Noite se Improvisa". No jogo, comandado por Blota Jr, ganhava quem conseguisse cantar uma música a partir de uma palavra dada pelo apresentador. O bordão "A palavra é..." se tornou famoso em todo o país. Na terceira eliminatória, quando subiu em uma grande palco pela primeira vez para defender "Alegria, Alegria", Caetano tinha ambições muito maiores do que o primeiro lugar. Apresentou-se com um grupo de cabeludos argentinos chamados Beat Boys que empunhava um instrumento profano para aquela plateia: guitarras elétricas. Recebeu uma imensa vaia. Entrou com uma cara furiosa e, sem pestanejar, atacou os acordes iniciais de sua música. As vaias foram baixando e alguns aplausos começaram a ser ouvidos. À medida que a música prosseguia, mais e mais vaias iam se transformando em aplausos. Caetano terminou ovacionado e, emocionado, tombou para trás. Caiu no chão de costas embevecido pelo estrondoso sucesso instantâneo. Estava provado que poderia haver uma música jovem e brasileira.

Outro momento tenso ocorreu quando "Beto Bom de Bola" (Sérgio Ricardo) foi anunciada como classificada. A música contava a história de um famoso jogador de futebol que acabou seus dias sem glória. Evidentemente, era inspirada em Garrincha. Mas a interpretação não agradou. Primeiro, porque Sérgio escolheu um coral amador de operários da Willys para acompanhá-lo. O arranjo também não ajudou muito. E, por fim, a melodia passava longe de arrebatar uma panela de pressão como aquela que se formara no teatro Record. Resultado: a classificação de "Beto Bom de Bola" foi vaiada.

A última eliminatória também contou com a apresentação mais animada do festival. O frevo "Gabriela" (Francisco Fuzzeti, conhecido como Chico Maranhão), com o MPB 4, incendiou o auditório. Maranhão era estudante de arquitetura e alguns amigos, para apoiá-lo, levaram guarda-chuvas e dançaram com eles na platéia.

Geraldo Vandré chegou com moral para cantar "Ventania". Era ídolo da juventude universitária e emocionou o país com sua "Disparada" (Geraldo Vandré / Théo de Barros) no Festival da Record de 1966. Mas caiu no erro de tentar repetir a fórmula. Trocou o impacto da queixada de burro, que imitava um chicote em "Disparada", por uma engenhoca que fazia barulho de buzina e acendia luzes. O invento deveria potencializar versos como "Hoje muito mais amado / sou chofer de caminhão". Não convenceu.

O ilustre desconhecido Martinho José Pereira, que ainda era sargento do exército, inscreveu um samba despretensioso. Na sua gravação, que chegou às mãos dos jurados aos 48 do segundo tempo, ele batucava "Menina Moça" numa caixa de fósforos. Não acreditou quando recebeu o convite para participar do festival e assustou-se com o assédio da imprensa ao chegar a São Paulo. Cantou sua composição ao lado de Jamelão na eliminatória e, quando se preparava para ir embora, foi agarrado por um funcionário da Record: "Não vai embora, não. A sua está no páreo". O júri já tinha escolhido "Alegria, Alegria", "Gabriela" e “Ventania” para a final. Martinho, que mais tarde ficou conhecido com o apelido "da Vila", ficou chateado quando recebeu a notícia de que a quarta seria "Beto Bom de Bola".

A finalíssima do III Festival da Música Popular Brasileira era assunto obrigatório nos bares, faculdades, mesas de jantar e rodas de amigos. No palco do teatro Record estava uma geração praticamente imbatível da MPB: Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Edu Lobo, Elis Regina, Nara Leão, Sidney Miller, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Nana Caymmi, Sérgio Ricardo e MPB 4 competiam entre si em um programa ao vivo. Algumas músicas que o tempo se encarregaria de consagrar - como "Eu e a Brisa" (Johnny Alf), “Menina Moça" (Martinho da Vila) e “Máscara Negra” (Zé Keti) - ficaram de fora.

Algumas experiências das eliminatórias se repetiram: Nara Leão e Sidney Miller foram recebidos com um pouco de vaias e alguns apalusos em "A Estrada e o Violeiro"; Chico foi ovacionado com "Roda Viva"; Gil e Caetano, consagrados. "Samba de Maria" também levantou o público por causa da interpretação cheia de energia e suingue de Jair Rodrigues. Roberto Carlos estava mais tranquilo do que nas eliminatórias e cantou de forma segura sua "Maria, Carnaval e Cinzas". Geraldo Vandré, concentrado, não repetiu o sucesso de "Disparada" com a sua "Ventania", e Elis Regina foi bastante aplaudida com "O Cantador".

Já "Gabriela" foi uma festa novamente. Empolgados com o sucesso da música de Maranhão, os estudantes organizaram um carnaval no Teatro Record. Levaram mais guarda-chuvas para dançar e pular ao som do frevo cantado pelo MPB 4.

Nana Caymmi foi novamente vaiada com "Bom Dia". Mas nada que chegasse perto das vaias que ouviu no FIC por "Saveiros" (Nelson Motta/Dori Caymmi). E nada que chegasse perto ao que aconteceu com Sérgio Ricardo naquela noite da final do III Festival da Record. Escaldado pela recepção negativa que a música teve nas eliminatórias, Sérgio diagnosticou que o arranjo deveria ser alterado para a final. Mas, desde o momento que Blota Jr anunciou que "a canção será apresentada com um arranjo inteiramente modificado", as vaias não pararam. E o barulho era ensurdecedor. Zuza Homem de Mello, que era técnico de som do festival, revela que teve que desligar todos os microfones da plateia e ligar apenas os do palco. Sérgio pediu um minuto e, quando conseguiu um esboço de silêncio, provocou: "depois desse festival, minha música vai ser chamar 'Beto Bom de Vaia'". Ouvir um urro como resposta. Em seguida, tentou se reconciliar: "aqui na plateia só tem gente inteligente como eu estou vendo. Vocês estão vaiando a vocês mesmos". Mais uma imensa massa sonora hostil tomou conta do teatro. Contrariado, resolveu cantar. Mas o barulho da plateia era tão intenso que, no meio da apresentação, teve que parar porque não conseguia ouvir os músicos. Era o auge do tormento. Como diz em seu livro "Quem Quebrou meu Violão", a partir desse momento Sérgio "entregou aos orixás". Perdeu cabeça. Bateu o violão contra um suporte que estava no palco e atirou-o na plateia numa cena que se tornaria histórica.

Ninguém sabia o que fazer. Paulinho Machado de Carvalho chamou Blota Jr. e comunicou que Sérgio estava desclassificado. Mas as pessoas estavam ensandecidas com o ocorrido. A música seguinte era "Ponteio". Edu estava nervoso e cochichou para Marília Medalha nos bastidores: "ou a gente vira essa plateia ou estamos fritos". Logo nos primeiros acordes, ficou claro que a música seria ovacionada do começo ao fim. Marília Medalha não aguentou e chorou duas vezes. Edu também não conseguiu conter a emoção.

A composição de "Ponteio" se deu de uma maneira curiosa: muita gente ficou encantada com a melodia de "O Cantador", de Dory Caymmi, antes dela ganhar a letra de Nelson Motta. Uma delas foi Edu Lobo. Gostou tanto que começou a fazer um esboço de letra para o refrão. Onde Nelson Motta colocou "Ah, sou cantador/ Canto a vida e a morte/ Canto o amor", Edu escreveu "Ah, quem dera agora/ Eu tivesse a viola/ Pra cantar". O sucesso de melodia gerou um desconforto e, segundo Dory, "Edu, galantemente, tirou o time de campo". Mas aquele mote ficou martelando a cabeça de Edu. Tempos depois, encaixou sua letra em uma nova melodia e convidou Capinam para escrever o resto. Horas antes do fim das inscrições para o o festival, nascia "Ponteio", cujo título Edu tirou de um caderninho em que anotava possíveis nomes para suas músicas.

Agora, estava ali, prestes a vencer o festival musicalmente mais rico de todos os tempos. Quando foi anunciada como vitoriosa, a plateia cantou os nomes de Edu e Marília. "Domingo no Parque" ficou em segundo lugar, seguido por "Roda Viva", "Alegria, Alegria", "Maria, Carnaval e Cinzas" e "Gabriela". O prêmio de melhor letra foi para "A Estrada e do Violeiro", e a melhor intérprete foi Elis Regina.

Além da qualidade musical, o III Festival da Record teve uma influência imensa na música brasileira. Segundo Nelson Motta, em seu livro "Noites Tropicais”, “é naquele momento que explode o tropicalismo, que racha a MPB, que Caetano e Gil se tornam ídolos instantâneos, que se confrontam as diversas correntes musicais e políticas da época.”

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