quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

1976 - Os Doces Bárbaros

Acaba a excursão de Doces Bárbaros

Por Caetano Veloso
Jornal do Brasil - 07/1977

Acaba a excursão de Doces Bárbaros, de novo, sozinho, recomecei a compor. E é principalmente das canções que surgiram nesse período que se compõe o repertório deste novo disco. A primeira que pintou foi a que veio a se chamar "Gente". Fiz primeiro a música, pensando em colocar sobre ela uma letra qualquer que pudesse ser cantada por mim e por um coro feminino, em cima de uma base rítmica gostosa. Estava querendo fazer um disco todo de melodias doces sobre ritmo quente. E coloquei, de fato, uma letra qualquer. Depois de pronta eu achei louca. Hoje acho que "Gente" é uma canção linda e emocionante e louca como Doces Bárbaros e a considero uma homenagem à experiência que Doces Bárbaros foi pra mim.

"Gente" ainda não estava de todo pronta quando fiz, sem pensar, a melodia do que veio a se chamar "Tigresa". Algumas pessoas estavam conversando aqui na sala de som da minha casa e eu não estava a fim de prestar atenção na conversa delas. Fiquei tocando violão e assoviando e cantarolando qualquer coisa. Fui dormir sem planos de voltar a pensar nela, uma vez que meu projeto era compor canções doces e swingadas. Mas a música era linda mesmo e resolvi fazer uma letra. Mas não sabia o que dizer com palavras, uma coisa que ficasse dentro do clima que já era pra nós essa melodia. Mas também não quis forçar muito a cabeça. Um dia estava com Moreno vendo um seriado de televisão, onde apareciam uns meninos indianos que andavam com um elefante, e encontravam um outro menino que era selvagem e não sabia falar e reagia como um felino. Quando eles tentavam se aproximar do menino selvagem, um grande tigre vinha protegê-lo. O menino tinha sido criado por aquele tigre que, na verdade, era fêmea. O fato é que pensei que tigre fêmea diz-se tigresa, e aí estava a palavra. Dessa palavra parti prá inventar uma letra que mantivesse o clima da música. Imaginei logo uma mulher e queria algo assim como uma história. Essa mulher foi se nutrindo de imagens de mulheres que conheço e conheci, e essa história foi se nutrindo de histórias que vivo.

Terminou pintando também, um pouco de História, uma vez que o interesse que as pessoas da minha classe e da minha geração uma vez demonstraram pelo assunto política, aparece datado. Mil pessoas me perguntaram quem é a "Tigresa", ou pra quem a música foi feita. Pois bem. Depois da mamãe Tigresa da televisão, a primeira imagem de mulher que veio à minha cabeça foi a de Zezé Mota, e isto está bem evidente nas unhas e na pele. Mas terminei descobrindo que os olhos cor de melão da Sônia Braga, embora não deixem de ter um parentesco com os cabelos da menina Maribel. Mas Bethânia e Gal já estavam lá. E Norma Bengell, Clarice, Claudinha, Helena Inês, Maria Ester, Silvinha Hippy, Marina, muitas outras meninas que eram bebês em 1966, Suzana e Dedé. Por fim a "Tigresa" sou eu mesmo. É minha primeira canção parecida um pouco com Bob Dylan.

Voltando ao projeto das músicas doces swingadas, apareceu a melodia de "Odara", que é uma palavra que aprendi com Wali Salomão. Digo que aprendi com Wali que essa palavra passou pra mim com o valor semântico que tem na letra da canção. Claro que já tinha ouvido na voz de Clara Nunes num desses sambas sobre religião negra. Também nos ambientes de candomblé essa palavra é usada. Mas não sei exatamente em que sentido, em Itapoã, "Odara" quer dizer bom - bonito - bacana. Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de que "Odara" era a mais bonita das canções que eu tinha feito ultimamente. Até hoje não encontrei bons argumentos em contrário.

Fiz "Leãozinho" para Dadi. Gosto de chamá-lo de Leãozinho por que ele é um lindo menino do signo de leão, que é também o meu signo. Disse a ele: "Vou fazer uma música pra você". Aí comecei a fazer uma melodia em cima do título já escolhido. A letra saiu quase que ao mesmo tempo que a música.

Sempre tive (e talvez tenha hoje mais que nunca) a vontade de ampliar o repertório de possibilidades sonoras dentro do campo de criação de música popular no Brasil. Quando musiquei "Triste Bahia", escrevi a Augusto de Campos: "quero que o resultado pareça ao mesmo tempo folclore e ficção científica". A paixão compartilhada com Gil pela Banda de Pífaros de Caruaru, desde 1967, era a expressão dessa vontade. O tropicalismo foi um espernear contra um cercado pequeno. A gravação londrina de "Asa Branca" foi um primeiro esforço de concentração no sentido de realizar algum som a mais. O "Araçá Azul" - depois da música para o filme São Bernardo, de Leon Hirshmam - foi o luxo de entrar no estúdio sem nada e deixar esse desejo fluir para que eu, assim, pudesse testá-lo. O nordestino fanhoso, o negro rouco, o índio, o marciano, o árabe, o indiano, o roqueiro distorcido, os Smetaks, o insólito - tudo isso é a minha identificação. A letra para a pipoca moderna. O chinês, o japonês, o baiano. Havia planejado fazer muitos sons "de índio". Queria fazer um disco de canções doces com swingue e queria trabalhar em casa uns sons "primitivos".

Assim, sobre uns sons de assovios superpostos que eu havia armado aqui, procurei colocar umas palavras e usei como tema ou pretexto um desenho que tinha feito com lápis de cor e que veio a ser escolhido depois por mim pra ser a capa do disco. A música se chamou a Grande Borboleta. Two Naira Fifty Kobo foi o apelido que o pessoal deu ao motorista que trabalhava pra gente em Lagos. Ele ouvia música dia e noite. É uma figura inesquecível. Fiz uma melodia em Lagos mesmo, sentindo o clima das músicas que ouvia por lá. Quando cheguei à Bahia, depois do carnaval, fui pondo as palavras que, afinal, ficaram tão bonitinhas. Two Naira Fifty Kobo é a minha canção da Refavela.

"Frases" foi a primeira música de Jorge Ben que me impressionou profundamente. Achava tudo aquilo que veio antes muito lindo e agradável, mas "Frases" me impressionou pela força de poesia, pela liberdade de linguagem. Isso em 1966. Bem antes do tropicalismo. Acho que essa foi uma composicão inaugural da nova poesia de Jorge Ben, da nova poesia brasileira. E agora eu a gravei.

O disco chama-se "Bicho". Principalmente por causa do desenho que escolhi pra capa. Eu já tinha feito esse desenho e o achava bonito. Quando fui olhando para o repertório que gravaria, vi que tinha muitos nomes de animais envolvidos. Aí pensei em qualquer coisa de animal, Guilherme Araújo me disse: "Esse seu disco será um jardim zoológico". Eu olhava para o desenho daquela borboleta astral e pensava: "Bicho da vida, esse é o bicho da vida". Quase coloco o nome do disco de "Bicho da Vida". Depois reduzi prá "Bicho". Achei mais sintético, menos retórico. Acredito que o fato dos músicos brasileiros se tratarem, uns aos outros, de bicho, e também o fato da palavra estar em toda caricatura que se faz de hippy nas novelas e nos humoristicos da televisão, e também ser nome de jornalzinho de cartoon e comics, tudo isso se enriquece com esta minha redescoberta da palavra que, por sua vez, sai também enriquecida de tudo isso. Palavra gasta, palavra intacta.


in Alegria, Alegria Rio de Janeiro: Editora Pedra Q Ronca, 1977 

Nenhum comentário: