quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

1967 - Domingo

Domingo
Por Caetano Veloso - Livro: Verdade Tropical (1997)

Eu próprio - que a essa altura não via para mim outra vida que não fosse urna vida de artista - vira surgir a oportunidade de gravar um LP. Edu, que tinha me recebido com carinho desde o dia em que cheguei de Salvador num ônibus, falava com interesse sobre minhas canções. Dori Caymmi, que eu conhecera na Bahia num passeio seu pela terra do pai Dorival, e Francis Hime, que me fora apresentado por Edu e Dori, também demonstravam entusiasmo pelo que eu parecia prometer. Eram todos jovens da minha idade e punham a curiosidade e o desejo de enriquecer o ambiente musical brasileiro à frente das ambições egóticas. Eram naturalmente generosos e excitavam-se corn a relativa novidade que esse grupo de baianos apresentava. Falava-se de nós. A afinação e a beleza de emissão de Gau (era assim que escrevíamos o apelido só usado pelos muito íntimos, até que Guilherme Araújo mudou a grafia para Gal, pois a maioria das pessoas ainda a chamava de Gracinha) eram tão cultuadas quanto a sua timidez. Suponho que foi o próprio Dori - que afinal produziu o disco - quem convenceu João Araújo, então diretor artístico da Philips (atual PolyGram) e hoje chefão da Som Livre (o selo vinculado à tv Globo), a fazer um LP reunindo Gal e eu. Nós gravávamos de manhã, horário reservado aos iniciantes e especialmente inapropriado para mim que sempre dormi tarde e demoro a me sentir inteiramente acordado. Mas, embora o sentimento dominante fosse o de frustração permanente, alguma coisa do disco me agradava desde a feitura. Mais que tudo os arranjos de Dori e seu jeito de tocar violão. A voz de Gal, naturalmente em quase tudo. E até minha própria voz em "Um dia" e, com reservas, em "Coração vagabundo". Enquanto eu e Gal gravávamos esse disco, que veio a se chamar Domingo, Rogério e eu projetávamos um repertório para Gal que superasse tanto a oposição MPB/Jovem Guarda quanto aquela outra oposição, mais profunda, que se dava entre bossa nova e samba tradicional, ou ainda entre música sofisticada moderna (fosse bossa nova, samba-jazz, canção neo-regional ou de protesto) e música comercial vulgar de qualquer extração (versões de tangos argentinos, boleros de prostíbulos, sambas-canções sentimentais etc.).

Guilherme Araújo, que se apaixonara pela força expressiva de Bethânia desde a primeira noite no Teatro Opinião, quis passar da condição de mero produtor de espetáculos à de verdadeiro empresário, e viu no grupo de amigos de Bethânia um possível elenco de contratados à altura de suas pretensões. Guilherme era um personagem fascinante. Prognata, de braços finos e ombros estreitos, ele, que com sua feiúra combinada a um ar imodesto tinha tudo para ser repulsivo, terminava por cativar quem quer que transpusesse a barreira do primeiro impacto e realmente dele se aproximasse. Havia uma espécie de nobreza no seu jeito franco de emitir opiniões originais sobre o mundo dos espetáculos. Ele repetia sem cessar um elogio a Bethânia que era uma síntese do seu critério: "Internacional, meu querido. Ela é a mais internacional de todas as artistas brasileiras". Para ele, nós, os outros baianos, éramos a confirmação do que ele vira em Bethânia. Éramos "chiques" e "modernos" e poderíamos ser "internacionais". Mas, embora ele tenha vindo a trabalhar de fato com todo o grupo e tenha permanecido ao lado de Gil, de Gal e meu por muitos anos depois que Bethânia se desligou dele, sempre me pareceu evidente que nenhum de nós jamais chegou a impressioná-lo como Bethânia o fez.

Ele abriu um escritório em Copacabana para dali dirigir os trabalhos e começou a fazer planos para seus novos contratados. Convidou Dedé para ser sua secretária. Ela, que, depois de uns meses num banco e outros num jornal, estava precisando de emprego, aceitou. Guilherme estava seguro quanto a Bethânia e Gil, cujas vidas profissionais tinham deslanchado. Mas não via nenhuma possibilidade de eu subir num palco para cantar e viver disso. Eu respondia, com uma segurança que o fazia rir incrédulo, que eu tinha certeza de ter talento para palco ou o que fosse, mas o fato é que o que ele considerava a única saída possível para mim era o mesmo que eu me imaginava fazendo: orientar os colegas, escrever canções e roteiros para seus shows, escrever releases para seus discos. Quanto a Gal, esta sim devia viver de cantar e ele via mesmo um futuro radioso para ela na profissão, bastava que nós todos víssemos que, com sua voz lindíssima e sua figura doce, ela poderia tornar-se uma espécie de nova rainha do iêiêiê. Não uma cantora comercial qualquer, mas uma nova forma de cantora comercial, uma super-Wanderléa com um repertório inteligente. Isso ele dizia, e sorria de nossa reação temerosa e desconfiada. Sobretudo Dedé, para quem Gal era uma quase-irmã, temia que Guilherme viesse a atirá-la na mais degradante vulgaridade. O curioso é que os planos de Guilherme para Gal eram, afinal de contas, muito semelhantes aos que Rogério e eu estávamos a ponto de lhe propor. Eu nada dizia a Guilherme sobre isso, pois tinha medo de enfraquecer minha resistência a suas idéias mais frívolas, ou de contaminar a nobreza de propósitos do projeto rogeriano com o que corria o risco de ser mero comercialismo empresarial.

Uma discussão paradigmática desses conflitos sutis foi a que envolveu o nome artístico de Gal. Seu nome de batismo é Maria da Graça Costa Penna Burgos. Desde Salvador, escrevíamos Maria da Graça nos cartazes e nos programas dos shows do Vila Velha, e a chamávamos de Gracinha no dia-a-dia e, carinhosamente, de Gau. Havia e há milhares de Gaus na Bahia: é o apelido carinhoso de todas as Marias das Graças ou da Graça de lá. Na verdade, no caso da nossa Gal, Maria da Graça era apenas o nome que constava na carteira de identidade e era usado como nome artístico; para todos os efeitos, seu nome era Gracinha: assim é que nos referíamos a ela em presença de estranhos, assim é que a apresentávamos a novos amigos. Na intimidade, no entanto, nós a chamávamos de Gau. Guilherme achava Maria da Graça inviável como nome de cantora. Ele concordava que era belo e nobre, mas sugeria uma antiga intérprete de fados portugueses, não poderia servir para uma cantora moderna, muito menos e aqui ele voltava a sorrir diabolicamente para uma nova rainha do iêiêiê. Ele gostava de Gau. Nós também. Em primeiro lugar porque era seu nome real (isso era fundamental para nós), e depois porque era bonito e fácil de aprender, além de ser marcante, uma vez que no Rio (e em São Paulo, pelo menos) esse não era um apelido comum como na Bahia. Mas havia dois problemas: Guilherme achava vulgar e "pobre" artista de nome único (para ele era indispensável um sobrenome se o nome não fosse composto, e mesmo os nomes compostos raramente eram aceitáveis: Maria Bethânia era, é claro, uma exceção genial); e Gau, escrito assim, com u, parecialhe pesado e pouco feminino. Como em quase todo o Brasil Gal e Gau têm pronúncia idêntica, achamos praticamente indiferente que a grafia fosse a escolhida por ele (que se referia a uma cantora francesa chamada Francis Gal como exemplo). Restava a questão do sobrenome. Gal Penna? Gal Burgos? Guilherme, não sem razão, preferiu Gal Costa. Este era mais eufônico do que os outros dois. Ele não ousava sair dos nomes verdadeiros por saber de nossa intransigência quanto a isso. Mas eu não gostei. Eu achava que já tinha concedido o bastante em aceitar o l, que ele aceitasse o nome único: Gal, simplesmente, era a melhor solução. Mas ele insistiu no sobrenome e eu disse que Gal Costa parecia nome inventado, parecia nome de produto, parecia nome de pasta de dentes e, finalmente, se Gau não era suficientemente feminino, Gal era abreviatura de general. Com a subida do general Costa e Silva ao poder, em substituição ao marechal Castelo Branco, Gal Costa passava a ser homônima do segundo presidente do período militar. Mas a própria Gal, de quem afinal devia ser a última palavra, aceitou o nome e ele funcionou muito bem com a imagem pop que se criou para ela.

Até hoje me irrita ouvir alguém comentar que Gal Gosta é um nome criado e que o verdadeiro nome dela é Gracinha ou Maria da Graça. Gal ou Gau sempre foi mais seu nome do que Maria da Graça, e só quem não a conhecia de perto é que pensa que seu nome íntimo era Gracinha e, no entanto, esse nome Gal Costa teve sabor de coisa inventada para mim mais do que para qualquer outro. Hoje, que todos a chamam simplesmente de Gal, fico inteiramente em paz com essa história: é seu nome, seu nome verdadeiro, e é um nome baiano, profundamente autêntico e revelador da cultura particular do recôncavo da Bahia e da Cidade do Salvador, além de ser bonito sonoramente e o modo mais carinhoso de se a chamar. É, como queria Guilherme, internacional e pop, mas é pessoal e regional até a ponta da raiz. É um lance de poesia profunda, feito de acaso e equívocos, que serve como síntese do drama tropicalista. Mas na altura, eu, que hoje o amo mais que ninguém, fui quem mais reagiu contra esse nome. Lembro de comentar com Rogério a discussão e ouvir dele a declaração de que sempre estaria no extremo oposto de Guilherme, de quem se sabia fatal antípoda: "É impossível que o que ele planeja seja o mesmo que eu planejo, pois ele é o empresário e eu sou o desempresário". Contudo, e apesar de falar com alguma ira na voz, ele se esforçava para me fazer entender que ele pensava mais numa dialética necessária ao processo, ou, melhor ainda, numa complementaridade, do que numa competição que implicasse inimizade reles. O mais bonito de tudo foi que Roberto Carlos e Erasmo Carlos, atendendo a um pedido de fazer uma canção para o primeiro disco tropicalista que ela gravou, apresentaram "Meu nome é Gal", em que, sem nada saberem das exigências de Guilherme, insistem no apelido monossilábico e, num texto escrito para ser declamado por ela, frisam que "não precisa sobrenome, pois é o amor que faz o homem".

Gal tinha vindo da Bahia, como eu, na esteira de Bethânia e Gil, para tentar profissionalizar-se. Ela nunca tinha querido nada em sua vida a não ser cantar. Era-lhe inimaginável querer ser Outra coisa que não cantora. Gil formara-se em administração e exercia a profissão; Bethânia sonhara em ser atriz e chegara a escrever contos e fazer esculturas de madeira e cobre; eu já fora pintor, quisera ser professor e ainda queria ser cineasta; mas ela seria cantora ou nada mais. Desde criança - Dedé contava - Gal usava as panelas da cozinha para fazer o som de sua voz
voltar ampliado aos seus próprios ouvidos, e assim poder exercer melhor controle sobre a emissão, como se estivesse num estúdio de gravação. Todos os jovens músicos encantavam-se com sua voz, e a colaboração com eles na feitura de Domingo estava sendo muito boa. Edu compôs uma canção "no estilo do grupo baiano" (isso era um grande elogio, pois o que ele compôs era enormemente mais requintado harmonicamente do que tudo o que fazíamos), uma canção chamada "Candeias", sobre lembranças de suas férias pernambucanas, para ela gravar no nosso disco, e até hoje considero essa a melhor interpretação de Gal nesse primeiro trabalho. Para mim, tudo se fazia possível no estúdio - minha timidez não era grande demais -, porque eu já estava mergulhado nos novos projetos que me distanciavam do material que gravávamos. Conversando com Rogério e Agrippino, discutindo com Guilherme, ouvindo os conselhos de Bethânia sobre Roberto Carlos, ouvindo o próprio Roberto Carlos, vendo Terra em transe e Chacrinha, compondo "Paisagem útil" e "Alegria, alegria", eu cantava as canções de Domingo com considerável desassombro. Ainda assim, quando ouço hoje esse disco me espanto com o atraso com que ataco as notas e me irrito com a lentidão mental que isso revela. Quando estou de bom humor, atribuo isso ao horário matinal das sessões de gravação.

Domingo já devia estar pronto quando Gil, que tinha deixado a Gessy Lever e se mudara com mulher e filhas para o Rio, recebeu um convite de não sei quem em Pernambuco para fazer uma temporada de apresentações no Recife. Guilherme foi com ele. Quando os dois voltaram, Gil estava transformado. Talvez os muitos dias longe da família - e ele era então um estreante naquela solidão de viagem que excita a mente - o tivessem deixado mais sensível e receptivo aos estímulos do caráter cultural pernambucano, às insinuações da singularidade da nossa situação de brasileiros sob um governo militar que odiávamos, às contradições dos nossos projetos profissionais. O fato é que ele chegou no Rio querendo mudar tudo, repensar tudo e, sem descanso, exigia de nós uma adesão irrecusável a um programa de ação que esboçava com ansiedade e impaciência. Ele falava da violência da miséria e da força da inventividade artística: era a dupla lição de Pernambuco, da qual ele queria extrair um roteiro de conduta para nós. A visão dos miseráveis do Nordeste, a mordaça da ditadura num estado onde a consciência política tinha chegado a um impressionante amadurecimento (o governo de Miguel Arraes tinha sido, até sua prisão e deportação em 64, o mais significativo exemplo de escuta da voz popular) e onde as experiências de arte engajada tinham ido mais longe, e as audições de mestres cirandeiros nas praias, mas sobretudo da Banda de Pífanos de Caruaru (um grupo musical de flautistas toscos do interior de Pernambuco, cuja força expressiva e funda marca regional aliavam-se a uma inventividade que não temia se autoproclamar moderna - a peça que mais nos impressionou chamava-se justamente "Pipoca moderna") deixaram-no exigente para com a eficácia de nosso trabalho. Ele dizia que nós não podíamos seguir na defensiva, nem ignorar o caráter de indústria do negócio em que nos tínhamos metido. Não podíamos ignorar suas características da cultura de massas cujo mecanismo só poderíamos entender se o penetrássemos. Dizia-se apaixonado por uma gravação dos Beatles chamada "Strawberry fields forever", que, a seu ver, sugeria o que devíamos estar fazendo e parecia-se com a "Pipoca moderna" da Banda de Pífanos. Por fim, ele queria que fizéssemos reuniões com todos os nossos bem-intencionados colegas para engajá-los num movimento que desencadearia as verdadeiras forças revolucionárias da música brasileira, para além dos slogans ideológicos das canções de protesto, dos encadeamentos elegantes de acordes alterados, e do nacionalismo estreito.

Nada disso era propriamente novo para mim, exceto que tudo viesse assim de uma vez e tão sistematizado. Não deixava, porém, de ser surpreendente que partisse de Gil. Na verdade, não só muito do que ele falava já estava nos meus projetos nunca realizados com Rogério para Gal, na minha "Paisagem útil" e nas conversas de Guilherme, como o próprio Gil já vinha produzindo, com José Carlos Capinan, uma série de canções proto-tropicalistas para o filme Brasil, ano 2000, de Walter Lima Jr., um projeto larga e fundamente influenciado por Terra em transe. O modo como Walter encomendou as canções, a própria idéia do filme, faziam com que o que Gil e Capinan escreviam tivesse características do futuro movimento. Mas agora Gil vinha com uma clareza e uma veemência que quase assustavam, pois, apesar de ter tido sempre mais interesse em política do que eu, Gil é, de ordinário, adaptável e mesmo passivo. Guilherme Araújo que tinha ido com ele para Recife certamente aproveitara a oportunidade de estarem os dois a sós para espicaçar a ambição artística de Gil. Sim, porque Guilherme deve ser visto não apenas como um empresário com senso de oportunidade mas (talvez sobretudo) como um jovem de temperamento criativo, cujo sonho de mudar a face do show business brasileiro via no grupo baiano sua possibilidade de realização. Ele foi, de fato, um co-idealizador do movimento. Suas habilidades propriamente empresariais foram sempre muito discutíveis (embora aí também ele mostrasse originalidade) e se tornaram bastante desastradas com o passar do tempo, mas seu desejo de deixar urna marca indelével na história do entretenimento no Brasil realizou-se plenamente. Gil parecia antes ter usado esse empurrão dele como um detonador e um pretexto para extravasar seus próprios desejos. De repente, Guilherme agia como quem cumpre uma missão. Sem um segundo de hesitação e já tendo me convencido a dar tanta atenção aos Beatles quanto a Roberto Carlos , ele procurou todos os nossos colegas mais próximos e com os quais mais nos identificávamos, e marcou reuniões para conversas. Sérgio Ricardo, que tinha feito a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol e se tornara um dos mais militantes dos compositores saídos da bossa nova (Carlos Lyra tinha se mudado para o México), mostrouse o mais interessado e combinou-se que a primeira reunião seria em sua casa. Suponho que só houve duas dessas reuniões. Capinan, Torquato Neto, Sidney Miller, Edu, Chico Buarque e eu, além de Sérgio Ricardo e Gil, estávamos presentes a ambas. Talvez Francis Hime e Dori tenham ido a urna ou outra. Ou às duas. Não estou certo, O que lembro com clareza é que, se, por um lado, Chico, boêmio e desconfiado de programas, embriagava-se e ironizava o que mal ouvia, Sérgio Ricardo tomava algumas palavras de Gil pelo que este não quereria que elas fossem tomadas: por exemplo, "ser realmente popular" levava-o a sugerir que fizéssemos shows em portas de fábricas. Gil tinha enormes dificuldades de se fazer entender. Quando ele mencionava a música rural de Pernambuco, quase se ouvia alguém responder que Edu já trabalhava com isso satisfatoriamente; e quando ele falava nos Beatles, alguns olhos baixavam, outros arregalavam-se, todas as bocas silenciavam. Ele não ousava falar em Roberto Carlos. E, depois de urna pausa tensa, alguém se manifestava para tentar mostrar que entendera tratar-se de uma estratégia esperta e um tanto desonesta mas fadada ao fracasso , a qual consistiria em fazer uma música mais comercial para assim poder melhor veicular idéias revolucionárias. Enfim, Gil não chegou a desistir de se fazer entender, pois os outros é que desistiram de tentar segui-lo. Restava-nos seguir sozinhos. (…)

Nenhum comentário: