segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

1982 - Festa do Interior

Janeiro de 1982


Com o imenso fracasso do show "Fantasia", Gal Costa resolveu abortar a carreira do espetáculo após apenas quatro meses de apresentações. Meses depois, já com a alma lavada com o sucesso do disco homônimo ao mal fadado espetáculo, Gal resolveu tentar de novo, chamando Waly Salomão para dirigir seu espetáculo, que veio a ser intitulado "Festa do interior", nome do maior sucesso do disco e, depois veio a se saber, de toda a carreira de Gal Costa. Waly, com seu toque de Midas na carreira de Gal, modificou a estrutura do show, mas manteve boa parte do repertório, embora tenha feito modificações também no roteiro do show. O show deu certo, e após a estréia do Maracanãzinho, Rio, em 30 de janeiro de 1982, Gal pode excursionar por todo o Brasil divulgando seu disco novo, e com imenso sucesso. O show foi oficialmente encerrado com uma apresentação em Brasília, na ocasião do XX aniversário da capital federal, cantando para um público estimado em 300 mil pessoas.
Set List:

1- Abertura
2- Meu nome é Gal (Roberto Carlos - Erasmo Carlos)
3- Canta Brasil (David Nasser - Alcir Pires Vermelho)
4- O gosto do amor (Gonzaguinha)
5- Noites cariocas (Minhas noites sem sono) (Jacob do Bandolim - Hermínio Bello de Carvalho)
6- Meu bem, meu mal (Caetano Veloso)
7- Açaí (Djavan)
8- O bater do tambor (Caetano Veloso)
9- Vassourinha eletrônica (Moraes Moreira)
10- Folhetim (Chico Buarque)
11- Tapete mágico (Caetano Veloso)
12- Força estranha (Caetano Veloso)
13- O amor (Caetano Veloso - Ney Costa Santos - Vladimir Maiakovski)
14- Sebastiana (Rosil Cavalcanti)
15- Bem me quer (Roberto de Carvalho - Rita Lee)
16- Paulo e Bebeto (Mílton Nascimento - Caetano Veloso)
17- Chuva, suor e cerveja (Caetano Veloso)
18- Massa real (Caetano Veloso)
19- Balancê (João de Barro - Alberto Ribeiro)
20- Festa do interior (Moraes Moreira - Abel Silva)

RELEASE

Gal Costa desde o lançamento do disco está em festa. Emplacou dois sucessos nacionais antes do disco sair: Festa do interior e Meu bem, meu mal. Disco de ouro -+ de 100 mil - só com os pedidos antecipados dos lojistas. Disco de platina -+ de 250 mil - um mês depois de LP nas lojas. A ser mantido o mesmo pique de venda, Fantasia fechará o mês de janeiro com 400 mil cópias. O repertório de Fantasia deixou tonto os programadores de rádio. Em São Paulo, Açaí disparou. No Rio, O amor e Massa real ficaram entre as preferidas. Os baianos não resistiram ao dengo de Roda baiana. E por aí foi. Cada estado elegeu a sua faixa. Entretanto, Festa do interior e Meu bem, meu mal entraram para o rol das unanimidades nacionais. Fantasia foi apontada pela imprensa especializada como o melhor disco da carreira de Gal. E não deixou de aparecer relacionado entre os melhores lançamentos de 81. Por tudo, Fantasia é sinônimo de festa para Gal Costa. Por quê não reunir toda essa alegria e sucesso num show?

O show "Festa do interior" nasceu desse sentimento, Gal Costa quis dividir com o público a grande alegria que o disco Fantasia lhe trouxe. Antes de convidar Wally para dirigir o show - explica Gal - eu já tinha parte do repertório escolhido. Wally me trouxe idéias e músicas. Selecionamos as músicas que o público pudesse cantar. Quero que as pessoas participem comigo. É um show muito simples, não tem mistério. Tem a vontade de subir no palco, que eu estou afastada desde de novembro, quando terminou a minha temporada no Canecão. Quero sentir essa vibração frente à frente, porque eu sei que as pessoas tem festejado as suas festas com as minhas músicas, elas estão gostando do meu novo disco. Quero ver, sentir essa alegria de perto. Eu não agüento ficar muito tempo sem cantar. Eu já disse e repito: cantar é a minha vida.

Na direção do show está Wally Salomão, também diretor de uns dos maiores sucessos da carreira de Gal - O show FA-TAL (71) e ÌNDIA (73). Na época do FA-TAL, comenta Wally - o Rio de Janeiro era um grande bode. O show de Gal - as pessoas me diziam - era a clarabóia, o lugar de entrar a luz e o ar. A época hoje é outra - prossegue - Gal mudou, eu mudei, o Rio de Janeiro mudou, mas essa fonte de energia que flui espontâneamente de Gal, que eu percebo através de um simples telefonema, quando ela me cumprimenta com um dengoso "Oi gatinho", permanece, é transparente no seu trabalho. Esse encanto, essa energia juvenil estará em FESTA DO INTERIOR, uma festa para a massa, concebida sem nenhum sentimento de culpa ou medo. Estou com Oswald de Andrade: "A alegria é a prova dos nove".

Gal só vai cantar sucessos: Balancê, Sebastiana, Chuva, suor e cerveja, Folhetim, Força estranha, Meu nome é Gal - e outros - seis do disco novo: Meu bem, meu mal, Açaí, Massa real, Tapete mágico, Canta Brasil, Festa do interior e dois sucessos que não fazem parte do repertório: Bem me quer, mal me quer, de Rita Lee e Vassourinha elétrica de Moraes Moreira. Os arranjos e a direção musical são de Lincoln Olivetti.

Para o diretor Wally Salomão, Gal Costa é uma musa cabocla, mulher madura e jovem. Voz que encanta e sidera os seres humanos. Gal foi a artista a gravar suas músicas - Vapor barato, incluída no LP GAL A TODO VAPOR. E por intermédio de Wally, Gal conheceu Luiz Melodia, na época um anônimo compositor do morro de São Carlos que "nunca tinha atravessado o túnel" - segundo relato de Wally. Melodia mostrou a Gal "Black, meu nego" que por sugestão de Wally passou a se chamar "Pérola negra", menção obrigatória na discografia de Gal.

O show FESTA DO INTERIOR marca o reencontro de Gal e Wally. O tempo cronológico do afastamento não está na cabeça do diretor. Vê o reencontro como um "caso de amor que se interrompe, mas quando volta é intenso". Wally quando dirige, tem a atitude de não estabelecer uma relação simbiótica com o artista. "É o artista quem se coloca nas tábuas. Ele comanda o espetáculo, eu apenas dirijo". Procura mostrar tudo o que o artista deseja tornar transparente. No caso de Gal, fazer de FESTA DO INTERIOR uma grande festa. Mandar a tristeza embora e brincar livremente.

Gal Costa aprendeu que é preciso ser forte para não enfraquecer. Ter saúde para neutralizar a doença. Sobretudo a dos outros. FANTASIA é um disco sem ódio, sem rancor. Um disco de sentimentos nobres, contra as "misérias humanas" denunciadas por Maiakovski no poema O AMOR, da peça O PERCEVEJO. Gal fez de FANTASIA um sonho. Pra gente sonhar colorido, em estéreo e cinemascope.

"Nada é mais lindo do que o sonho dos homens de fazer um tapete voar". O toque e o tapete mágico são de Caetano. Basta pegar uma carona e viajar com Gal para conhecermos as dez faixas de FANTASIA: "a bordo do tapete você também pode viajar, amor, basta cantar comigo e ver aonde eu vou".

Gal decola exaltando a terra cabocla em Canta Brasil, de Nasser e Pires Vermelho; se delicia com as rimas sonoras absolutamente originais criadas por Caetano para Meu bem, meu mal ("caminho, vinho, vício-início, guru-porto seguro, mãe-champagne"); responde com dengo, charme e sensualidade quando Ivan Lins e Vítor Martins pedem: Roda baiana; se emociona com os versos de Djavan em Faltando um pedaço ("o amor é como um raio galopando em desafio/abre fendas, cobre vales/revolta as águas dos rios/quem tentar seguir seu rastro/se perderá no caminho/na pureza de um limão,na solidão de um espinho"); arrebata O AMOR, de Maiakovski, musicada por Caetano Veloso.

Vira-se o lado. E o sonho continua. Gal explode de alegria na FESTA DO INTERIOR, de Moraes Moreira e Abel Silva; se impressiona com a associação livre de imagens poéticas criadas por Djavan em Açaí ("solidão de manhã/poeira tomando assento/rajada de vento/som de assombração/coração sangrando toda a palavra sã"); antes de descer do Tapete mágico ouve "não quero ouvir dizer que não vai dar, vai ter que dá", concorda com a Massa real, de Caetano Veloso, e acaricia a Estrela, estrela, de Vítor Ramil com uma exuberante orquestração vocal.

Difícil imaginar o estado de espírito de Gal Costa ao entrar no estúdio para registrar um show tão impiedosamente pisoteado pela crítica: O início do show - conta Gal - foi muito polêmico, conturbado e isso me imobilizou bastante. Entrei no estúdio com garra, primeiro porque me senti muito atingida e também porque me sinto uma pessoa verdadeiramente forte. Eu não me lembro, aqui no Brasil um artista sofrer críticas tão violentas. Música para mim libera todas as minhas barras de vida. Sem música talvez eu fosse uma pessoa profundamente angustiada, estivesse até internada no pinel.

Entrei no estúdio, acima de tudo, para fazer o que gosto, que é cantar e, com vontade de registrar um sentimento alegre, vivo e forte. Junto com Mariozinho Rocha meu produtor, uma pessoa genial, altíssimo astral, não foi difícil encontrar o tom do disco. Me fez muito bem gravar FANTASIA. É um disco forte, que tem muita vitalidade. Repare como os músicos interpretam cada arranjo, como estou cantando. É a festa do meu interior. É como eu me encontro agora, alegre e forte.

Acho que foi uma prova de fogo que Deus me mandou - prossegue - Gal em seu desabafo. Depois da minha grande vitória com Gal tropical, vim com o show FANTASIA. Parece que as pessoas não perdoam dois sucessos seguidos. Claro, você tem direito de não gostar de um trabalho, mas exijo que falem com respeito. Não mexi no show por causa da crítica. Não canto pra ela. Estreei sabendo que precisaria mexer em alguma coisa. A luz, por exemplo, não gostava dela. O final do show estava confuso, muita gente no palco. Aumentei o repertório. Mantive a banda do Lincoln, que é formada por músicos geniais. Agora que já passou eu posso dizer com a maior sinceridade, que não tenho medo de mais nada. Cresci, sou muito mais forte do que eu pensava. Pra mim era uma questão de sobrevivência. Meu trabalho é minha vida, minha grande alegria.

Gal manteve no disco o mesmo título do show, que lotou o Canecão nos três meses e três semanas que permaneceu em cartaz. Para Gal, as últimas semanas foram as melhores da temporada. Festa do interior começou a tocar nas rádios e trouxe para o Canecão um público jovem, que o transformava, literalmente numa festa todas as noites, com o público aplaudindo de pé, dançando e cantando junto com ela.

Para Gal, o nome FANTASIA foi uma escolha felicíssima de Guilherme Araújo. O disco, na verdade, não é um registro fiel do show. FANTASIA - Gal defende - foi mantido porque é um nome mágico, lindo, é o título de um trabalho que fiz e vou continuar a fazer em 82 e que assumo que foi bonito.

Nem todas as músicas do show estão no disco. Apenas Canta Brasil - que abria e fechava o show - as quatro músicas de Caetano e a música de Moraes Moreira, compositor que Gal não gravava desde a época do FA-TAL. Roda baiana foi encomendada ao Ivan Lins especialmente para o disco. Faltando um pedaço de Djavan e Estrela, estrela de Vítor Ramil foram sugestões de Mariozinho Rocha, assim como o convite ao grupo Roupa nova para gravar, fazer o arranjo e o vocal na faixa Açaí. Os arranjos do show - de Guto Graça Melo e Lincoln Olivetti - foram mantidas no disco. Diferente do show está somente o arranjo de Tapete mágico - "ficou mais leve, mais doce, arabesco com a música" - recriado, a pedido de Gal, por Gilson Peranzzeta, também autor dos arranjos de Roda baiana e da "orquestração vocal" de Estrela, estrela.

- O meu grande sonho era gravar uma faixa usando minha voz como instrumento. Logo que o Mariozinho me mostrou a música de Vítor Ramil tivemos a idéia de chamar o Peranzzeta para escrever o arranjo vocal. demoramos sete dias, para gravar. Foi a mais difícil do disco. Primeiro porque fazer vocal é muito diferente de cantar e eu não estou acostumada. Gravei com o Zé Luis, um cantor novo de muito talento. Cada um gravou oito vozes diferentes e depois dobramos. O Zé Luis fez do médio grave para o grave e eu do médio agudo para o agudo. Precisei de muita concentração e paciência. Você tem que pensar e emitir a nota ao mesmo tempo, usar a voz como um instrumento afinado, com o cuidado para não semitonar. Foi difícil, mas acho que valeu. Aprendi muito gravando.

Gal Costa nunca estudou canto. Mas como tem a voz naturalmente colocada, compensa protegendo-a cuidadosamente pois é seu instrumento de trabalho e, como disse, sua alegria de viver. Não fuma, bebe pouco - "vinho e champagne de vez em quando". Não toma droga. Faz ginástica. Se trata com homeopatia. Quando está trabalhando procura dormir o suficiente para se sentir descansada. Evita tomar gelado, corrente de ar condicionado.

Dos 14 LPs gravados, Gal Costa considera Fantasia o melhor. Não conta o fato de achar o último sempre o melhor. Ela tem razões concretas e reais. Diz que em Fantasia cresceu como cantora. Sente sua voz mais potente - "com o tratamento homeopático a potência do meu pulmão aumentou". Acredita que a banda de Lincoln Olivetti contribui para deslanchar a voz:

- Foi muito bom trabalhar com a banda de Lincoln. Como é uma superbanda da pesada, exigiu de mim naturalmente um esforço e isso me fez crescer como cantora. Trabalhei durante quatro, cinco anos com outros músicos liderados por Perna Froes, grande arranjador mas senti que já estava na hora de mudar, queria colocar alguma coisa nova na minha carreira. Fantasia é melhor por isso, porque cresci como cantora, minha voz está mais solta, cristalina, me sinto mais musical. Tive a sorte de reunir nesse disco um repertório que poucas pessoas tem. Gravei com os melhores músicos que tocam nesse país. Fantasia é lindo. Eu adoro esse disco.


Fonte: Doug Carvalho - Verdadeira Baiana

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